CARTA A UMA AMIGA

Querida amiga,

Fico triste ao ver a maior parte das pessoas te tratarem tão mal. É injustiça. A culpa não é sua.

Conheço bem suas qualidades. Você me acolheu, quando eu ainda era criança, com minha família. Sempre nos tratou tão bem!

Por sua causa, prosperamos, crescemos. Você nos deu oportunidades que outras nos negariam. Vida gostosa, tranquila, em segurança. Tudo de que precisávamos estava sempre por perto, desde a escola até o supermercado. Você cuidou bem disso.

É, amiga, mas o tempo passou. Com sua disposição para acolher as pessoas, acabou acolhendo gente demais. E, agora, não consegue cuidar bem de todos.

Na verdade, você conseguiria cuidar muito bem dessas pessoas, mas tem muita gente querendo se dar bem às suas custas, né?

Por isso a minha tristeza. Hoje, no dia do seu aniversário, vejo que dilapidaram o que havia de bom em você. Levaram para proveito próprio aquilo que você oferecia como bem de todos.

À sua volta, muitos sofrem. Nas pseudo-cidades que nasceram à sua volta, muitas com a finalidade única de render votos para quem queria ficar com suas riquezas, jovens morrem todos os dias. Logo perto de você, que, no passado, foi o lugar dos sonhos de todo jovem.

E falam de você como se fosse lugar apenas de roubo, injustiça, desmando e, principalmente, corrupção.

Mas você abriga gente como eu. Como minha família, como muitos amigos que tenho. Gente que se levanta e vai trabalhar, que ganha a vida com honestidade, que quer ver uma sociedade mais justa.

Que culpa tem você, ou nós, né amiga, se mandam para cá esse pessoal que vem só pensando em se dar bem?

Hoje você completa 54 anos. A situação não está boa pro seu lado, sei disso. Mas tenho esperança de que melhore. Estamos em ano de eleições. Quem sabe surge um novo grupo de pessoas mais honestas? Só não podemos perder a esperança, amiga. Afinal, você é Brasília, a Capital da Esperança…

Sou feliz por morar aqui, por você ter me abrigado. E não tenho vontade de ir para nenhum outro lugar, viu?

Parabéns pelo seu aniversário. Espero que no ano que vem minha cartinha possa ser mais alegre.

Abraço grande de sua amiga.

CAPITAL DA ESPERANÇA

Está chegando o aniversário de Brasília! Minha cidade, que eu amo. Moro aqui desde que tinha 5 anos.

Não teria pensado em escrever sobre isso hoje, não fosse o texto do meu irmão sobre a cidade – http://www.ziller.com.br/blog.

Ele sempre foi mais ativo em manifestações políticas do que eu. Talvez pela diferença de idade. Os dois anos que nos separam me levaram a ter mais compreensão do que acontecia durante a ditadura, razão pela qual até hoje tenho muito medo de participar desses movimentos.

Concordo com tudo que ele escreveu. Entristeço-me ao perceber que os brasileiros enxergam sua capital como a capital da desesperança, o oposto completo do que ela deveria ser.

Eu, porém, insisto em ser esperançosa. Há de chegar o momento em que a indignação coletiva se tornará transformação de valores e entendimento de que pequenas corrupções geram grandes corrupções.

Um fato chamou minha atenção de forma especial no texto do Henrique. Nos últimos tempos, tenho assistido, indignada, pessoas defenderem a ditadura, com o argumento de que havia menos corrupção. Ingenuidade total e completa. A única diferença é que naquele tempo era proibido falar. Será que essas pessoas se esqueceram do AI-5?

O que me chamou a atenção foi que ele narra uma cena que me marcou profundamente, e que me causou sérios problemas emocionais, que só consegui identificar e tratar há poucos anos. Desde que me lembro, tenho medo de estouros, como de balão, fogos de artifício, aqueles que o escapamento dos carros antigos faziam. O tempo foi passando e o medo se transformou em ataques de pânico. Ouvia um desses sons e ficava paralisada, suava frio, o coração disparava, enfim, pânico. Fiquei atônita ao saber que ele se lembra daquele dia, porque jamais falamos nisso. Era assim, naquele tempo: a gente não podia falar. E foi um alívio, porque eu não sabia se tinha acontecido exatamente como eu me lembrava.

Era noite. Noite de ditadura. Papai e minha prima Rosaly estudavam na UnB. Ela morava em nossa casa e os dois tinham saído. Estávamos só eu, mamãe e Henrique. De repente, ouvimos muitos gritos, gente correndo embaixo do bloco. Fomos para a janela, ver o que estava acontecendo. Uma porção de jovens corria e gritava. De repente, apareceram soldados armados, atirando nos jovens. Acertaram uma moça. Ela caiu. Mamãe nos afastou da janela no mesmo instante, mas eu ainda vi dois soldados arrastando a jovem pelos braços enquanto os outros continuavam correndo atrás dos manifestantes e atirando.

Nossa sala de jantar não tinha janelas para a parte exterior do prédio. Mamãe, com certeza apavorada, nos levou para lá e entramos embaixo da mesa. Lembro-me de perguntar:

– Mãe, o que aconteceu?

Queria que ela me falasse sobre a moça que foi ferida, mas ela não falou. Claro, estávamos na ditadura. Nosso tio estava exilado. Ela tinha que ter muito cuidado com o que falava com a gente, porque criança fala muito e, naquele tempo, acreditem, por causa da palavra de uma criança, você podia ir para a cadeia e ser torturado até a morte. Não é imaginação. É fato. Mamãe respondeu:

– A UnB quer cobrar uma taxa de matrícula. Os alunos não concordam e estavam protestando.

Apavorada, pensei no papai e na Rosaly no meio daqueles que estavam fugindo. Perguntei:

– Papai e Rosaly vão pagar, né?

Não me recordo da resposta. Não era importante. Eu penso que aquela moça morreu. Se não naquele momento, morreu depois, na cadeia. Nunca vou saber o nome dela, que teve participação tão importante na minha vida. Não me refiro às crises de pânico. Isso eu tratei e resolvi. Mas, por causa dela, eu sei o que é ditadura. Interessante. Meu tio passou 15 anos no exílio, membros de minha família foram presos. E aquela moça sem nome é o motivo maior de eu saber o que é ditadura.

Voltando à esperança. Mesmo naqueles dias tenebrosos, tínhamos esperança. Brasília é uma cidade em que o ensino público era de primeira qualidade. Planejado por Darcy Ribeiro. Henrique expande o tema no texto dele. Por mais que os militares tenham desmantelado a estrutura maravilhosa dos quatro primeiros anos da cidade, as sementes ficaram. Então, há um grande número de pessoas pensantes que cresceram aqui. E há os esperançosos.

Há os que lutam para que nenhuma outra moça sem nome seja arrastada pela rua como se fosse um saco de lixo. Há muitos que levantam a voz e apontam os crimes cometidos contra o interesse público.

Apesar de todo o medo que ainda sinto, já consegui participar de alguns momentos especiais de manifestações. Tem que ser de dia, e mais de festa do que exatamente de protesto. Já é uma grande vitória, visto que outro medo que herdei daquela noite é o medo de ficar no meio de um monte de gente. E consegui vencer completamente o medo de levantar minha voz e dizer que, apesar de tudo que vemos à nossa volta, tenho esperança de dias melhores, pois moro na capital da esperança.

Algumas fotos de um dia em que levamos vassouras para varrer a corrupção do Congresso Nacional e da corrida “Venceremos a Corrupção”: (É, pelo menos desse tipo de movimento eu já consigo participar.)

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Eles se comprometeram a varrer a corrupção.

Eles se comprometeram a varrer a corrupção.

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