Está chegando o aniversário de Brasília! Minha cidade, que eu amo. Moro aqui desde que tinha 5 anos.
Não teria pensado em escrever sobre isso hoje, não fosse o texto do meu irmão sobre a cidade – http://www.ziller.com.br/blog.
Ele sempre foi mais ativo em manifestações políticas do que eu. Talvez pela diferença de idade. Os dois anos que nos separam me levaram a ter mais compreensão do que acontecia durante a ditadura, razão pela qual até hoje tenho muito medo de participar desses movimentos.
Concordo com tudo que ele escreveu. Entristeço-me ao perceber que os brasileiros enxergam sua capital como a capital da desesperança, o oposto completo do que ela deveria ser.
Eu, porém, insisto em ser esperançosa. Há de chegar o momento em que a indignação coletiva se tornará transformação de valores e entendimento de que pequenas corrupções geram grandes corrupções.
Um fato chamou minha atenção de forma especial no texto do Henrique. Nos últimos tempos, tenho assistido, indignada, pessoas defenderem a ditadura, com o argumento de que havia menos corrupção. Ingenuidade total e completa. A única diferença é que naquele tempo era proibido falar. Será que essas pessoas se esqueceram do AI-5?
O que me chamou a atenção foi que ele narra uma cena que me marcou profundamente, e que me causou sérios problemas emocionais, que só consegui identificar e tratar há poucos anos. Desde que me lembro, tenho medo de estouros, como de balão, fogos de artifício, aqueles que o escapamento dos carros antigos faziam. O tempo foi passando e o medo se transformou em ataques de pânico. Ouvia um desses sons e ficava paralisada, suava frio, o coração disparava, enfim, pânico. Fiquei atônita ao saber que ele se lembra daquele dia, porque jamais falamos nisso. Era assim, naquele tempo: a gente não podia falar. E foi um alívio, porque eu não sabia se tinha acontecido exatamente como eu me lembrava.
Era noite. Noite de ditadura. Papai e minha prima Rosaly estudavam na UnB. Ela morava em nossa casa e os dois tinham saído. Estávamos só eu, mamãe e Henrique. De repente, ouvimos muitos gritos, gente correndo embaixo do bloco. Fomos para a janela, ver o que estava acontecendo. Uma porção de jovens corria e gritava. De repente, apareceram soldados armados, atirando nos jovens. Acertaram uma moça. Ela caiu. Mamãe nos afastou da janela no mesmo instante, mas eu ainda vi dois soldados arrastando a jovem pelos braços enquanto os outros continuavam correndo atrás dos manifestantes e atirando.
Nossa sala de jantar não tinha janelas para a parte exterior do prédio. Mamãe, com certeza apavorada, nos levou para lá e entramos embaixo da mesa. Lembro-me de perguntar:
– Mãe, o que aconteceu?
Queria que ela me falasse sobre a moça que foi ferida, mas ela não falou. Claro, estávamos na ditadura. Nosso tio estava exilado. Ela tinha que ter muito cuidado com o que falava com a gente, porque criança fala muito e, naquele tempo, acreditem, por causa da palavra de uma criança, você podia ir para a cadeia e ser torturado até a morte. Não é imaginação. É fato. Mamãe respondeu:
– A UnB quer cobrar uma taxa de matrícula. Os alunos não concordam e estavam protestando.
Apavorada, pensei no papai e na Rosaly no meio daqueles que estavam fugindo. Perguntei:
– Papai e Rosaly vão pagar, né?
Não me recordo da resposta. Não era importante. Eu penso que aquela moça morreu. Se não naquele momento, morreu depois, na cadeia. Nunca vou saber o nome dela, que teve participação tão importante na minha vida. Não me refiro às crises de pânico. Isso eu tratei e resolvi. Mas, por causa dela, eu sei o que é ditadura. Interessante. Meu tio passou 15 anos no exílio, membros de minha família foram presos. E aquela moça sem nome é o motivo maior de eu saber o que é ditadura.
Voltando à esperança. Mesmo naqueles dias tenebrosos, tínhamos esperança. Brasília é uma cidade em que o ensino público era de primeira qualidade. Planejado por Darcy Ribeiro. Henrique expande o tema no texto dele. Por mais que os militares tenham desmantelado a estrutura maravilhosa dos quatro primeiros anos da cidade, as sementes ficaram. Então, há um grande número de pessoas pensantes que cresceram aqui. E há os esperançosos.
Há os que lutam para que nenhuma outra moça sem nome seja arrastada pela rua como se fosse um saco de lixo. Há muitos que levantam a voz e apontam os crimes cometidos contra o interesse público.
Apesar de todo o medo que ainda sinto, já consegui participar de alguns momentos especiais de manifestações. Tem que ser de dia, e mais de festa do que exatamente de protesto. Já é uma grande vitória, visto que outro medo que herdei daquela noite é o medo de ficar no meio de um monte de gente. E consegui vencer completamente o medo de levantar minha voz e dizer que, apesar de tudo que vemos à nossa volta, tenho esperança de dias melhores, pois moro na capital da esperança.
Algumas fotos de um dia em que levamos vassouras para varrer a corrupção do Congresso Nacional e da corrida “Venceremos a Corrupção”: (É, pelo menos desse tipo de movimento eu já consigo participar.)
Eles se comprometeram a varrer a corrupção.