PERDA IRREPARÁVEL

Não, não, não, hoje não é sobre meu pai, nem sobre qualquer outra pessoa que tenha morrido.

Eu tinha 5 ou 6 anos. Ele era lindo! De camurça, chiquetésimo. Meu primeiro mocassim. Tinha uma fivela dourada, ai, era meu xodó. A cor, meio lilás.

Preciso explicar que minha vida passou por uma mudança bem radical nessa época. Morávamos em Belo Horizonte. Papai, mamãe, eu e Henrique. Cristina e Clarice nasceram depois, já aqui em Brasília.

Lá em BH a vida era bem difícil, financeiramente falando. Não tínhamos carro, morávamos no segundo andar de uma casa no bairro da Floresta. Não era minúsculo, mas não tinha qualquer luxo. Brasília, inaugurada em 1960, não atraía ninguém. Para estimular funcionários a virem para cá, o Banco do Brasil ofereceu dois salários por mês e moradia. Um apartamento que, a meus olhos, era um palácio. Felizmente papai e mamãe tiveram a coragem necessária para desbravar o cerrado.

Apesar de a vida ser muito mais cara aqui, passamos a ter acesso a certos luxos que não dava para termos em BH. Isso incluiu meu mocassim de camurça lilás. Antes, meus sapatos eram comprados em uma loja que nem sei se ainda existe. Clark. Sapatos de excelente qualidade, mas sem qualquer graça. Daqueles de boneca, sempre pretos.

Com a mudança, veio meu mocassim! Eu o amava! Queria calçar a toda hora, inclusive quando ia brincar embaixo do bloco. Mamãe logo determinou:

– Nada de calçar esse sapato para brincar embaixo do bloco. Ele é para sair. Para descer, você usa as havaianas.

Na época, eu odiava havaianas com todas as minhas forças! Hoje, não tenho coleção porque no final do ano resolvi me desfazer de um monte. Ainda assim, estou aqui com uma, muito linda e há outras lá no closet.

Voltando ao mocassim. Certo dia, mamãe não estava em casa na hora em que desci para brincar. Resolvi, claro, calçar meu amado sapato para exibi-lo “prasamiga”. É, mulheres são mulheres desde sempre. Desci toda chique, me sentindo a Ieda Maria Vargas (se você não sabe quem é, pesquise, não vou entregar tudo de lambuja). A brincadeira foi ficando animada, tirei os sapatos para pular amarelinha e… quando fui pegar meu tesouro para subir, só encontrei um pé.

Procurei igual uma doida. Nada. Concluí que tinha descido só com um pé do sapato. Não queria encarar a realidade. Pode rir. Hoje eu rio.

Passei meses à procura do sapato. Lembro-me bem de abrir a porta de um armário da cozinha, ver lá dentro as latas de óleo e ouvir a voz da empregada, dona Maria:

– Ô Cláudia, quando é que você vai parar de caçar esse sapato? Ele sumiu.

Tragédia das tragédias. Devo ter levado uma bronca por causa da desobediência, ou talvez não, porque sofri tanto com a perda que talvez mamãe tenha me poupado.

Na verdade, estou procurando o sapato até hoje. Nunca mais encontrei um mocassim que ficasse tão lindo no meu pé, com a mesma cor. E acho que é por isso que nunca falta um mocassim no meu armário.

Sim, foi uma perda irreparável. Só entende a mulher que já passou por situação semelhante. Ah, e se você encontrar pelas ruas de Brasília, ou de qualquer outra cidade do mundo, um mocassim de camurça lilás do tamanho de uma criança de cinco ou seis anos, por favor, traga para mim. Jamais superei essa perda.

Olha ele aí:

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PESADELO

Raramente tenho pesadelos. Sérgio, ao contrário, tem muitos. Bem, pelo menos é o que ele diz. Por causa dos pesadelos dele, já levei soco, chute, ouvi um “SOCORRO” com a voz dele bem fininha e fraca e também já acordei com ele caindo da cama. Há quem questione o soco e o chute como resultantes de pesadelo. Prefiro acreditar que sejam.

Lembro-me bem de um pesadelo realmente assustador. Alguém me agarrava pelo pescoço e me puxava para um buraco escuro. Eu não conseguia gritar. Em minha mente, comecei a chamar Jesus, a mão teve que me soltar e acordei tremendo em minha cama. Foi horrível.

Na infância, tinha aquele clássico pesadelo de estar pelada na rua. Depois de um episódio digno de um post por si só, em que caminhei no Parque da Cidade de sutiã, sem camiseta, achando que estava de top, esse nunca mais me atormentou.

Os piores de que me lembram aconteciam quando eu tinha febre, ainda criança. Era comum eu adoecer, com dor de garganta. E, com a febre alta, lá vinham eles. Dois, especificamente, se repetiam alternadamente.

No primeiro, eu tinha que carregar uma carga enorme, muito acima de minhas forças. No instante seguinte, a carga ia encolhendo, até ficar tão pequena que eu não conseguia enxergar. E eu era obrigada a encontrar e pegar. Ai, que aflição!

O outro era mais assustador. Era O GORDO! Um homem gordo – com a mesma aparência em todos os pesadelos – aparecia e se fingia de bonzinho. Enganava meus pais, só eu sabia que ele era malvado, muito malvado. Eu tentava convencer meu pais, mas eles não acreditavam que o gordo era mau. Até que ele se revelava e tínhamos que escapar dele, que nos perseguia incansavelmente. Era um pavor!

Anos se passaram. As crises de amigdalite foram se espaçando. A febre alta acabou e o gordo ficou no esquecimento. Eu estava na universidade e compartilhava um carro com Henrique e mamãe, de modo que muitas vezes voltava de ônibus para casa no final da tarde.

Uma vez, já tinha anoitecido. Não me lembro o motivo de voltar já à noite, pois, quando ficava estudando na biblioteca, papai me buscava. O fato é que já estava escuro e eu, sentada no último banco do ônibus. Faltavam quatro quadras para chegar à nossa. Paramos no ponto. A entrada era bem ao lado do banco em que eu estava. De repente, PÂNICO! Ali estava o gordo! Dentro do ônibus! Era EXATAMENTE o gordo dos meus pesadelos. E ele olhou para mim!

Num primeiro momento, fiquei paralisada de pavor. Em seguida, veio o desespero para sair do ônibus. Fui empurrando as pessoas e saí pela primeira porta que encontrei. Lembro-me de ver o gordo partindo, olhando para mim. Será que estava olhando mesmo?

E eu me pergunto: será que ele era mesmo igual ao gordo dos meus pesadelos, ou eu vi um gordinho e me lembrei do malvado?

Como gosto de olhar a vida com humor, acho graça da minha experiência. Evidente que eu não sonhava com aquele homem. E fugi, apavorada, de um homem que, provavelmente, não tinha nada de malvado. Além disso, caminhei da 304 até a 308 por causa do medo irracional. De vez em quando olhava para trás, com medo de ver que o gordo tinha descido do ônibus e estava me seguindo. Assim que entrei em casa, fui logo contando:

– Mãe, eu vi O GORDO!

E rimos muito com a história toda. Bom, na nossa família em geral á assim, que nem nos filmes do Rin-Tin-Tin – todos acabam sempre rindo.