A HISTÓRIA DE ANA 3 (ficção)

CONTINUAÇÃO DE A HISTÓRIA DE ANA 2

Ana cantava e cantava, não raciocinava mais. Não sabia há quantos dias estava presa naquele lugar esquisito. E sua mente continuava presa às lembranças de sua vida.

Com muito esforço e trabalho, os três filhos conseguiram concluir a universidade. Ana e João não permitiram que trabalhassem na infância, mas, com 15 ou 16 anos, eles passaram a estudar à noite e trabalhar de dia. O estudo os levou a conseguirem empregos melhores. Casaram-se, e a alegria da vida foi aumentando: chegaram os netos! Um dia, em uma das muitas reuniões da família, Pedro, o mais velho, comunicou que os três casais haviam se reunido e tomado uma decisão. Daquele dia em diante os pais não trabalhariam mais. Estavam aposentados. Seriam sustentados por uma mesada que os filhos fixaram. Era mais do que ganhavam trabalhando. João tentou retrucar que era forte, que não ia ficar à toa. Paulo falou que, então, estava na hora de começar a fazer o que ele gostava: trabalhar com madeira. Dariam um jeito de montar uma pequena oficina, para o pai preencher seu tempo construindo móveis para dar ou vender, conforme quisesse. Mas não precisava tirar dali o sustento. Agora seria aposentado.

Ana não relutou por um segundo sequer. Foi logo dizendo:

– Que maravilha! Agora vou poder cuidar dos meus netos!

Nem ela, nem João, conhecia a vida sem trabalho de sol a sol. Foi fácil se acostumar a se levantar depois do nascer do sol, tomar café na cozinha com calma, conversando sobre tudo e qualquer coisa ou ficando em silêncio, porque tudo já fora dito. Em seguida, Ana ia à Catedral e João ia se divertir em sua oficina. Depois do almoço, uma sonequinha. Luxo dos luxos. À tarde, faziam o que queriam. Um pequeno passeio, visita aos filhos, brincadeiras com os netos, costura, bordado, marcenaria… A vida se tornara uma delícia, finalmente!

Ana não sentia fome mais. Nem dor. O corpo parecia todo anestesiado. A mente não parava, pensava o tempo todo em seus amados – netos, filhos, marido, com um traço de amargura. Não entendia como eles a tinham deixado presa em um lugar tão horrível. Mas pensava que talvez tivesse sido sequestrada e eles a estivessem procurando. Repetia cada nome, relembrava seu namoro com João, noivado, casamento, o nascimento de cada filho, os primeiros passos de cada um, as formaturas, os casamentos, o nascimento dos netos, o dia em que eles declararam que os pais estavam aposentados. Tantas lembranças maravilhosas!

Tentou descobrir há quanto tempo estava lá. A luz sumira várias vezes, mas não conseguiu contar.

Assim que o terremoto horrível parou, João saiu desesperado rumo à Catedral. Sabia que sua esposa estava lá. A cada passo, pedia a Deus para encontrá-la. O tremor, porém, fora tão forte que não era possível chegar à igreja. As ruas estavam bloqueadas por pilhas e pilhas de destroços. Telefones não funcionavam. Conseguiu chegar à casa de Pedro que, milagrosamente, não havia desabado.

Os outros filhos, o genro e as noras também foram aparecendo. Pela graça divina, só ferimentos leves. Mas, cadê a Maria? Todos sabiam que ela estava na Catedral, e tinham ouvido falar que ela caíra inteirinha. Combinaram ficar ali, na casa de Pedro, pedindo a Deus pela mãe, até ela ser encontrada.

A vigília que começou naquele dia não parava. Amigos chegavam, ficavam um pouco, depois iam embora. Um, dois, três dias se passaram. As pessoas, agora, começaram a tentar consolar a família, fazer com que aceitassem o que parecia ser inevitável: Ana devia estar morta sob os escombros da Catedral. A família, porém, se recusava a aceitar isso. João declarava:

– Não vamos desistir de pedir para Deus um milagre. Só vamos parar quando ela for encontrada!

E, assim, uma semana se foi.

Ana não tinha a mínima ideia de quanto tempo fazia que estava presa. Ouviu passos e vozes, mas achou que era sonho. Tentou gritar e não conseguiu. Continuou a cantar e a falar com Deus. Notou que a fresta de luz ficava maior. A mente, entorpecida por dor, fome e desidratação, não entendeu o que acontecia. Subitamente, não havia mais nada em cima dela. Ouviu muitos gritos:

– Está viva! Isso é um milagre! Tragam uma maca, rápido!

Mãos fortes, cuidadosas e bondosas a pegaram. Entendeu que alguém ia tirá-la da prisão. Continuou a cantar, e começou a agradecer a Deus. Viu muitos homens. Alguns aplaudiam, outros choravam. Não entendeu o motivo de tanta emoção e continuou a cantoria incompreensível.

Quando a colocaram sobre a prancha de madeira, voltou a sentir muita dor. Foi levada até um lugar onde havia um toldo branco. Um médico bondoso a examinou, falou com ela, que não entendeu uma palavra sequer. Não sabia se estava dormindo, se era sonho ou realidade.

Puseram a prancha no chão, não havia outro lugar. Lá ela ficou, dormindo e acordando. Via João, os filhos, os netos, mas achava que era sonho. Pouco a pouco foi recuperando as forças e a consciência e ficou sabendo de tudo: um terremoto destruíra a cidade. Falou logo:

– A cruz azul da Catedral ficou em pé. Eu vi.

Chorou ao saber que a médica bonita de olhos azuis morrera. Precisava de cirurgia na perna e teria que esperar, porque o hospital também desabara.

Ana via a preocupação da família, e repetia que Deus poupara a vida dela nos escombros e que iria cuidar dela sempre. De fato, poucos dias depois chegou um navio hospital, enviado pelos Estados Unidos e ela foi operada. A recuperação foi lenta, ela ficou com uma sequela na perna, que a fazia mancar e obrigava a usar muletas.

Não perdeu um segundo se lamentando. Só lamentava a morte da médica. Retomou suas atividades, e dizia, com humor:

– Sou muito mais forte do que Jonas. Fiquei uma semana embaixo de uma Catedral inteira. Três dias na barriga do peixe é muito fácil!

E ria, alegre, o que fazia todos à sua volta rirem também.

NOTA FINAL: A Dra. Zilda Arns morreu quando a Catedral de Port au Prince, no Haiti, desabou, no violento terremoto do início de 2010. Ela fazia uma palestra. Perda imensa para a humanidade! Anna Ziti foi resgatada dos escombros uma semana depois, colocada sobre uma prancha de madeira cantando e agradecendo a Deus. Homens que a resgataram não resistiram à emoção e foram às lágrimas. A fratura no fêmur requeria uma cirurgia que o hospital improvisado não tinha condições de realizar. O filho de Anna, em entrevista à CNN, contou que a família tinha permanecido a semana inteira reunida, pedindo a Deus pela vida dela e que nunca perdera a esperança de encontrá-la com vida. Esses são os fatos, amplamente divulgados. Todo o restante é o jeito como vejo as coisas que acontecem por aí…

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A HISTÓRIA DE ANA 2 (ficção)

CONTINUAÇÃO DE A HISTÓRIA DE ANA:

Perder os sentidos foi o melhor que poderia acontecer. Tanta dor, confusão completa. Não entendia o que lhe acontecera. Sua história continuava a passar-lhe pela mente, como um filme.

Não tinha nem 12 anos quando foi trabalhar na casa de outra família. Na verdade, achou bom. Era menos gente, dava para limpar – o chão era de cimento! Só não gostava de cozinhar. O banquinho em que subia para alcançar o fogão era meio torto, tinha medo de cair, de se queimar.

A patroa era bondosa. Ensinou Ana a cuidar bem da casa. Mas também não tinha dinheiro. Segundo os padrões de Ana, era rica, mas, na realidade, era gente de pouquíssimos recursos.

Ana queria estudar. Ardia de inveja das filhas da patroa, que iam todos os dias para a escola, com o uniforme limpo e engomado que ela lavava e passava todos os dias com capricho e muitas lágrimas.

A vida seguiu… Tinha 16 anos quando abriu a porta para um entregador. Gostou logo do rapaz simpático e educado, que também gostou dela, apesar de não achá-la bonita. Em pouco tempo, namoro, noivado e casamento. Como ela sempre sonhara. Marido bondoso, carinhoso. Era amor de verdade. Foram morar em um barraco feito em terreno de ninguém.

Cadê o João? E os meninos? Por que me prenderam aqui? Não consigo respirar, acho que vou morrer! Socorro!

A vida dos recém-casados era difícil. Ana e João concordavam: nada de um monte de filhos, e todos vão estudar. Vão ter a vida melhor do que a nossa. E o casebre era cuidado com o maior capricho possível. Sempre limpíssimo e enfeitado com flores que João trazia para Ana. Colhidas no mato. Pensavam em ter dois filhos. Deus mandou três: Pedro, Paulo e Maria.

Tanto Ana quanto João eram exemplos de pai e mãe dedicados, amorosos, exigentes. Era uma família feliz.

Ana, apesar de toda a dor e mal-estar, não esquecia os olhos azuis da médica. Tinha acontecido mesmo ou fora sonho? Aos poucos, foi se lembrando: estava na Catedral. Mas, como acabara presa naquele lugar escuro? Não entendia.

Cada vez que acordava, gritava até perder as forças, mas ninguém apareceu. Pela fresta, entrava luz, que batia bem no rosto dela. Mas, às vezes, a luz sumia. Aí era ainda mais aterrorizante sua prisão. Depois, concluiu que devia ser a luz do sol e, quando sumia, era noite.

Pensava em João, nos filhos, e pedia a Deus para eles a encontrarem, apesar de não ter a menor ideia de onde estava, nem de como acabara naquele lugar.

Pedro, Paulo e Maria aprenderam desde cedo a conversar com Deus. Os pais ensinaram.

João e Ana trabalhavam duro, e a vida foi melhorando. Conseguiram comprar uma casinha pequena, mas de alvenaria! Piso de cimento! Que alegria imensa para Ana! Tinha vontade de beijar o cimento que a separava da terra batida que a acompanhara a vida toda.

Fieis à promessa, Ana e João fizeram os filhos estudarem. Foi difícil. Muitas vezes as crianças se rebelavam. Os pais conversavam seriamente com elas, explicavam a importância de terem profissões melhores, de prosperarem. E conseguiram: Maria era professora, Pedro, contador e Paulo, bancário. Quanto orgulho para os dois batalhadores! Às vezes, Ana achava que o coração ia explodir de tanto orgulho.

Que fome! Como dói! Que sede! Ana começou a falar com Deus em voz alta. Achava que estava ficando louca, mas era melhor enlouquecer do que continuar presa ali. Tentava descobrir o que tinha acontecido. A cruz azul. Catedral. Olhos azuis. Mais nada. Era melhor, mesmo, conversar com Deus e cantar. A voz não era lá muito maviosa, porém ela acreditava que Deus vê a música do coração.

CONTINUA EM A HISTÓRIA DE ANA 3