É isso mesmo. Morreu. Não o que nasceu.
Enquanto a imensa maioria da população celebrava o nascimento de um menino, ocorrido há 2.000 anos, outro morria.
Tinha 17 anos, chamava-se Lucas. Vitimado por distrofia muscular, abandonado pela família, morreu na Casa Transitória de Brasília.
O contraste entre a noite de celebração e a tragédia da vida e morte do Lucas tocou fundo o meu coração.
A Casa Transitória abriga crianças e adolescentes em situação de risco. Ou foram abandonados pela família, ou tirados da família por ordem judicial devido a maus-tratos, ou são órfãos. Também podem ser filhos de presidiários e outras tantas situações que colocam a segurança dos pequenos em risco. As crianças deveriam ficar ali pouco tempo, à espera de solução definitiva – ou adoção, ou volta à família. Não é a realidade. Várias permanecem lá durante muito tempo. A maioria já passou da idade da adoção – ninguém quer adotar crianças de 8, 10, 12, 15 anos.
Há alguns meses, Clarice se apaixonou pela Casa Transitória. Com seu poder de motivar, reuniu um grupo de pessoas para fazer uma festa para as crianças. Foi um dia inteiro em um clube. À tarde, a festa dos mais novos, com aqueles brinquedos infláveis, bolos, doces, balões, enfim, tudo aquilo de que a criançada gosta. Eles foram para o clube escoltados por motociclistas do Esquadrão de Cristo. Já pensou na animação? Mas o plano da Clarice era muito mais elaborado. À noite, uma festa de gala, estilo 15 anos, para os mais velhos. Com direito a DJ, iluminação especial, terno para os meninos, cabeleireiro e maquiagem para as garotas. E valsa de 15 anos. Arrumou pares para cada um dos adolescentes. Teve ensaio e tudo mais.
Foi uma noite de sonho para eles, claro. Ela não sossegou. Começou a planejar a celebração do Natal. Foram lá, montaram árvore, enfeitaram a casa, contaram a história do bebê que nasceu em Belém para trazer amor a este mundo.
No início, a festa seria no dia 26 de dezembro, acabou sendo alguns dias antes do Natal. Felizmente. Lucas ouviu do amor de Jesus. Foi envolvido por amor, talvez como nunca antes, nos últimos meses de sua vida, na última semana de sua vida.
A morte do Lucas não pode ser classificada como tragédia. A distrofia é uma doença cruel, vai matando aos poucos. Quando ela chega ao final, é até uma libertação para a pessoa. Contudo, pensar que ele morreu sozinho, em uma casa onde não havia pai, mãe, irmãos, é uma tragédia imensa. Triste mundo em que vivemos, que maltrata crianças, que abandona os indefesos.
Eu penso na manhã do Natal. Enquanto as crianças brincavam alegres com seus presentes, aquelas da Casa Transitória, já tão marcadas pela dor, enfrentavam mais uma dor imensa: a de perder um dos amiguinhos. Mais tarde, Clarice e Rodrigo foram até lá, ajudaram a tirar a cama do Lucas do quarto, levaram um pouco de carinho às crianças.
Há alguns dias, uma delas perguntou:
– Tia Clarice, agora você não vai sumir, não, né?
Ela entendeu na hora a preocupação. Na época do Natal, aparece muita gente, levando presentes, repartindo amor. No resto do ano, porém, poucos se lembram da existência desses meninos que morrem na noite de Natal… Inclusive aqueles que, como eu, conhecem o menino que nasceu na noite de Natal, e que mandou que cuidássemos dos pequeninos dele, aqueles que podem morrer sozinhos na noite de Natal.
Que mundo tenebroso…