Há exatamente um ano eu estava encolhida no sofá da sala, sabendo que a qualquer momento daquela noite o homem mais bondoso que conheci morreria. Nem tinha mais forças para chorar. As lágrimas simplesmente escorriam sem parar.
Sei que é errado dizer assim, mas meu pai foi o homem “mais bom” de que já tive notícia. Tanto era bom em casa quanto em todas as suas outras esferas de ação.
Naquela noite, há um ano, eu sentia uma dor que não sei descrever. Ele se foi pouco depois das duas da madrugada. Descansou. Recebeu o prêmio que Deus concede aos que lhe são fieis. Mas aqui a coisa ficou difícil.
Durante muitas semanas, eu acordava todos os dias e começava imediatamente a chorar. Sentia uma dor tão funda, uma dor que Clarice descreveu, com muita propriedade, como “dor no sangue”.
Eu sempre pensei que o primeiro ano após a morte de uma pessoa amada é muito duro. E confirmei que é mesmo. São as datas importantes em nossa vida, aquelas em que a família se reúne e em que, como diz a música, “naquela mesa tá faltando ele, e a saudade dele tá doendo em mim”.
Papai gostava dessa música. E na nossa mesa, todas as sextas à noite e sábados no almoço, está faltando ele, e a saudade dele continua doendo demais em cada um de nós.
Além do dia a dia, as datas importantes foram extremamente difíceis. Cada aniversário, o dia das mães, o dia dos pais, o aniversário dele – em que a gente tinha feijoada – Natal, Ano Novo, feriados, o dia do Pão com Linguiça, em que celebrávamos a cura dele depois do câncer de próstata. Ele amava essas celebrações, gostava de comprar presentes, de fazer surpresas, de ver sua família alegre.
Papai ocupava muito espaço em minha vida. Ele era maior do que o mundo. Desde bem pequena, descobri que tinha um herói dentro de casa. Foi assim: tínhamos um açucareiro de metal. Mamãe me contou que papai o conseguira em um “salvados de incêndio”. Esclarecendo que eu era bem pequena quando recebi essa informação, conto que imaginava meu pai entrando em uma loja em chamas e saindo de lá com nosso açucareiro. Só faltava estar com a roupa do Super-Homem. Que fantástico! Possuir um objeto que meu próprio pai salvara do incêndio! Mais crescida, entendi que essa atitude seria altamente reprovável – pegar um objeto de uma loja que estava pegando fogo, sem pagar nada ao coitado do proprietário. Em minha mente infantil, contudo, meu pai tinha salvado o açucareiro do incêndio. Não posso negar um toque de decepção ao saber que ele tinha comprado o supracitado na loja, com um preço bem acessível por causa dos danos causados pelo fogo. Imperceptíveis, diga-se de passagem. Se não acredita, vá à casa da minha mãe. O objeto em questão ainda está lá.
Ele contava que quando eu tinha pouco mais de dois anos e precisei de uma cirurgia, fiquei no colo dele até uma enfermeira vir me buscar para me levar ao centro cirúrgico. Ela me pegou e me levou, usando a elaborada psicologia daqueles tempos. Ele contava que ouvia meus gritos no corredor:
– Não deixa, pai! Não deixa, pai!
E assim prossegui pela vida. Sempre que algum problema aparecia, eu gritava:
– Não deixa, pai! – para mim, ele era capaz de controlar qualquer situação.
É fonte de “mangação” na família um fato relativamente recente. Papai já estava com os movimentos muito limitados pela dor nos joelhos. Fazia sempre o capuccino que tomamos depois do almoço dos sábados. Sérgio comprou um “capuccino mixer”. Uma espécie de mini batedor, movido a pilha, para facilitar a mistura. Alguém me designou, muito inapropriadamente, para usar o negócio e misturar os capuccinos. Colocaram o pó e a água quente, e lá fui eu, morrendo de medo, com o troço. Assim que liguei, voou água quente para todo lado. Usando outras palavras, dei o mesmo grito de quando tinha dois anos:
– Está espirrando, pai, está espirrando!
Papai, coitado, gemendo com a dor nos joelhos, tentava se levantar da cadeira para vir me ajudar, até que alguém falou:
– Desliga o negócio, Cláudia!
Desliguei. Mas meu herói já estava em pé ao meu lado, pronto para resolver o problema.
Pense você: uma adulta, mãe de três filhos também adultos, casada, com o marido presente, que na hora do sufoco, chama o pai. É, foi assim até o final da vida dele. Não, até o final da vida ativa dele. No finalzinho mesmo, ele é que ficou dependente de nós. E isso foi muito difícil. Todavia, entendo que Deus nos deu esse tempo para nos acostumarmos a viver sem a referência maior de força humana que tínhamos.
Na adolescência, quando ele cuidava de todos os adolescentes e jovens de nossa igreja, sempre com o maior amor e carinho, eu nunca senti ciúme. Tinha, sim, um orgulho imenso. Aquele que todos admiravam, que todos amavam, era o MEU pai. No final do dia, quando todo mundo ia para casa, era na minha casa que ele morava. À noite, quando eu ficava com sede, era para mim que ele trazia a água.
Engraçado, nunca tive ciúme dos irmãos também. Muitos primogênitos se sentem ameaçados com a chegada dos outros, mas eu sabia que no coração do meu pai cabia muita gente. Cabia todos que quisessem entrar. E até alguns que não queriam.
É, sobrevivi a um ano sem o Albiléo. Não foi fácil. Na verdade, foi extremamente difícil, o ano mais difícil da minha vida. Muitas vezes, porém, eu falei que estava aliviada por ele estar no Céu.
Verdade verdadeira. Aconteceram tantas coisas ruins, que teriam deixado o meu papai preocupado, triste, desolado mesmo. Ele não merecia sofrer mais. Estava na hora de ir desfrutar da vida no Céu. Já tinha sofrido demais por aqui.
Ah, mas eu queria tanto contar para ele as coisas boas! Queria tanto dizer que vou começar o mestrado neste ano, que o Serginho se casou, que a Flá vai hoje à noite para o Nepal levando uma turma de missionários! Queria ir com ele à Disney ver a Júlia trabalhando, que soubesse que a Amanda foi contratada em um ministério, que o Serginho foi promovido de novo! Queria contar que a Dani tem um bom emprego, para o qual foi indicada por alguém que ela nem sabe que é! Queria muito que ele visse o Henrique tomar posse na Controladoria do GDF e que estivesse presente no culto de posse do filho espiritual, do coração, pr. Sérgio, em nossa amada igreja. Os dois filhos em posição da qual ele se orgulharia profundamente. No pior ano da minha vida aconteceram muitas coisas muito boas e eu chorei a ausência dele em cada uma delas.
Nesse ano sem Albiléo eu descobri algo interessante: nas horas tristes, eu me alegro porque ele não está mais aqui. E, nas horas alegres, me vem uma profunda tristeza, porque ele gostava demais de vibrar com nossas alegrias e vitórias.
Nunca existiu um homem “mais bom” que Albiléo. Tão bom quanto ele pode até ser que exista. E eu e mais três tivemos o privilégio de sermos seus filhos. Agora, choramos a saudade. É o preço a pagar por viver coisas boas demais.
Ainda dói muito. Minha prima Edi me falou hoje que um dia percebeu que se lembrava do pai sem sentir dor. Vou ficar esperando o dia chegar… Hoje só posso repetir que ainda dói muiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiito.