Na década de 60, em Brasília, o ensino público era o que se pode esperar de melhor. Cada superquadra tinha sua escola, com boa infraestrutura e bons professores. Poucas crianças estudavam em colégios particulares, que, a bem da verdade, eram poucos e pequenos. O projeto para o ensino público em Brasília era ambicioso e, infelizmente, ficou no sonho. Além da escola, cada superquadra tinha uma pré-escola (na época se chamava jardim de infância). Para cada 4 superquadras havia o que se chamava Escola Parque, onde tínhamos aulas de artes, educação física, artes industriais (artesanato que incluía marcenaria, cerâmica, tapeçaria, costura e outras muitas artes), música, leitura e até francês eu estudei na Escola Parque. De manhã, a gente ia para as matérias curriculares e, à tarde, para as “divertidas”. Com instalações magníficas, a Escola Parque tinha piscinas, cinema, biblioteca, um pavilhão para as artes industriais (por causa das máquinas pesadas), quadras de esporte, salão de festas e muitas salas amplas.
O governo do Distrito Federal não economizava na educação. E, por isso, tive professoras excelentes. Mas a primeira foi inesquecível.
Ela se chamava Célia. Naquela época, a gente dizia “dona” Celia.
Voltei a ter aulas com ela mais tarde, na terceira e na quinta séries, mas ela influenciou minha vida escolar para todo o sempre nos primeiros dias de aula da primeira série.
Bem, não era a primeira série. Vovó Evangelina era professora, e me ensinou a ler em casa. Minha mãe e meu pai tomaram a decisão maravilhosa de me deixar em casa o máximo de tempo possível. Como eu sabia ler, todo mundo achava que eu iria direto para a segunda série. Eu não só sabia ler, era leitora voraz e já tinha percorrido grande parte da obra de Monteiro Lobato, além dos muitos outros livros que mamãe e papai faziam questão de colocar à nossa disposição em casa.
Na hora de me matricular na escola, porém, surgiu um problema. Apesar de toda a proficiência na leitura, eu era uma anta em termos de aritmética. Vovó nem pensou nisso. E aí? Eu não cabia nem na primeira série, nem na segunda. Encontraram uma solução: havia uma sala de repetentes da primeira série, que eles chamavam de “segunda série preliminar”. E para lá eu fui.
Mamãe lembra que parecia haver crianças com limitações e deficiências, mas eu não me lembro disso. Lembro de uma colega que era muito grande e que já tinha repetido não sei quantas vezes. Era uma das piores na leitura.
Exatamente essa lembrança da leitura é que me remete à dona Célia. O livro didático trazia os textos que as crianças deveriam treinar em casa para ler em voz alta na sala. Eu me lembro, como se fosse hoje, do tédio de esperar os colegas balbuciarem, pensarem e gaguejarem enquanto tentavam decifrar as palavras. Minha primeira providência foi ler o livro inteiro. Acabei e a turma ainda não tinha chegado ao ponto final do primeiro texto. O que fazer? Ficava rabiscando, virando as páginas do livro, sei lá mais o que eu fazia.
Dona Célia logo notou. E me perguntou o que eu estava lendo em casa. Eu falei que era “Reinações de Narizinho”. Ela disse que eu ia gostar. Eu falei que sabia, porque já tinha lido outras vezes. E ela tomou uma decisão que, hoje, muitos professores não conseguem tomar: me mandou levar o meu livro. Enquanto os outros liam a cartilha, eu lia o meu livro. De vez em quando ela me convocava para a leitura em voz alta do texto deles, quando era para nota. No resto do tempo, eu me deliciava com os meus livros. Nas aulas que não eram de leitura, eu participava com a turma.
Nem sei quantos livros li naquele ano. Dona Célia poderia ter criado ali uma aluna problemática, se não tivesse o tato de atender minha necessidade. Eu a considero minha melhor professora porque, naquele tempo, ninguém falava nisso. Ninguém pensava em tratar os alunos individualmente. Éramos nivelados. Por cima, ou por baixo, mas tinha que ficar todo mundo no mesmo nível. Ela foi além do tempo em que vivia, ultrapassou o que lhe ensinaram. Trabalhava com o coração, e, por isso, podia ajudar os alunos. Quando voltei a ser aluna dela, em igualdade de condições com os colegas, ela nunca mais me tratou com qualquer tipo de deferência. Não fez de mim aquela chata, protegida pela professora.
Não me lembro do sobrenome dela. Mas não me esqueço do rosto. Não me esqueço de conselhos que ela nos dava, que não tinham nada a ver com as matérias do currículo. Tinham a ver com a vida. Por causa dela, adquiri o costume de ter sempre comigo um livro para me distrair em qualquer momento de tédio, como, por exemplo, esperar em filas.
Na época em que eu era aluna dela, meu sonho era ser professora. Não fui. Quem sabe amanhã. Deve ser maravilhoso seguir uma profissão em que, depois de quase meio século, uma pessoa ainda se lembra da gente e diz que influenciamos profundamente a vida dela. Pois é, foi isso que dona Célia fez comigo.
Como seria bom ver as crianças de hoje recebendo, sem pagar, o ensino de excelência que recebemos aqui em Brasília, no início… Um sonho! Que nosso Brasil se encha de donas Célias.