O Hino Nacional não é o meu predileto, em termos musicais. Claro que ele envolve uma carga emocional intensa. Há outros, porém, que praticamente deixamos de cantar, e cuja melodia e letra são mais do meu agrado. Meu predileto é o da Bandeira:
E a letra do Hino da República, em especial no refrão, expressa o que penso:
Estou patriota? Sim, considero-me bastante patriota, apaixonada pelo Brasil.
Minha reflexão, contudo, não é sobre a nação, mas sobre a liberdade. No sábado, um amigo comentou no Facebook que não gostou do tom que usei em meu post Complexo de Vira-Lata, e disse que era para eu fazer uma revisão e retirar algumas expressões que ele desaprovou. Respondi que a repetição tinha sido intencional, que não ia atender ao pedido dele e pedi desculpas se o tinha ofendido.
A situação me levou a pensar em um tempo muito ruim: a ditadura militar. Não sei exatamente por quê. O fato é que me lembrei do tempo em que tínhamos medo de escrever e falar. Pensávamos muito antes de abrir a boca em público e censurávamos a nós mesmos antes de colocar palavras no papel.
Fui muito traumatizada pela ditadura. Houve uma ruptura muito grande na minha vida. Antes de 64, jamais tinha ouvido meus pais me recomendarem para guardar um segredo. Depois, eles repetiam sempre que não podia falar, nem com os coleguinhas do colégio, sobre qualquer informação, mínima que fosse, relacionada ao paradeiro do meu tio Armando e de algumas outras pessoas que foram perseguidas na época. Não podia nem falar que tio Armando não estava no Brasil. Essa auto-vigilância me deixava em estado de constante alerta e muito medo, com apenas sete anos de idade. O sentimento me assombrou até o final da ditadura, e continuou por um bom tempo depois que ela acabou.
Em 1975, quando entrei na UnB, as turmas eram acompanhadas pelos “olheiros”. Alunos de mentirinha que delatavam os “rebeldes”, que podiam ser presos e torturados. A gente identificava os olheiros de longe: carregavam um volume da Barsa como disfarce. Já viu algum aluno ir para a aula com um volume de uma enciclopédia? Acho que eles queriam ser identificados, era uma forma de repressão, de nos impedir de manifestar o pensamento.
Estava grávida do Serginho quando veio a abertura. Nem acreditamos! Tio Armando ia voltar para casa! A chegada dele foi um dos momentos mais emocionantes de minha vida. Alegria imensa, carregada com a pesada tristeza da morte do filho mais velho do tio Armando e de um dos irmãos dele, meu amado tio Anfrido. Tio Armando e tia Filó pagaram um preço altíssimo por causa da ideologia dele. Um dos homens mais pacíficos e honestos de que já tive notícia. E eu continuei com medo. Não sentia que a liberdade abrira as asas sobre mim. A mente não passa a informação imediatamente para os sentimentos.
Levei muitos anos para conquistar a coragem de falar o que penso, sem medo de ser presa. Até mesmo para conseguir lidar, sem inquietações, com divergências de pensamento como a do meu amigo quanto ao meu post.
Alcancei, todavia, o dia em que a liberdade abriu as asas sobre mim. Ainda não consigo me sentir à vontade em manifestações públicas, em reuniões de debates acirrados. Creio, entretanto, que isso é uma característica de minha personalidade e não mais o medo de ser perseguida ou presa. Consigo, no entanto, colocar minhas ideias em palavras, aceitar que alguém discorda de mim e deixar, assim mesmo, o registro por ali.
Entretanto, lá bem no fundo, há um traço de inquietação: e se um dia voltar a ditadura e tudo isso que escrevi permanecer registrado na internet? Afasto o pensamento e me lembro de que a liberdade abriu as asas sobre nós. E me forço a pensar que elas não serão mais, nunca mais, recolhidas!
E que você continue falando o que pensa! Imagine só, te conheço a minha vida inteira e não tinha a menor idéia disso tudo!
Muito bem escrito!